quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A figura feminina em Camões (3)

C. N’Os Lusíadas

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N’Os Lusíadas ocorre uma pequena galeria de mulheres: Vénus, a “linda Inês” (Inês de Castro), a “branca Tétis” do Adamastor, as Ninfas dos cantos IX e X com a sua chefe, Tétis (que não é a do Adamastor…). Os traços que as caracterizam são muito distintos.

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1. Vénus

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Vénus surge no Consílio dos Deuses olímpicos, no canto I, a bater-se pelos seus rasteiros interesses. Reaparece depois no Olimpo, no canto II, num papel também de pouca dignidade e num retrato de um realismo erótico que vem pouco a propósito (nua a bem dizer, apenas lhe pende da cintura um pano quase transparente):

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Os crespos fios d'ouro se esparziam

Pelo colo que a neve escurecia;

Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,

Com quem Amor brincava e não se via;

Da alva petrina flamas lhe saíam,

Onde o Menino as almas acendia.

Polas lisas colunas lhe trepavam

Desejos, que como hera se enrolavam.

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Cum delgado cendal as partes cobre

De quem vergonha é natural reparo;

Porém nem tudo esconde nem descobre

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, pera que o desejo acenda e dobre,

Lhe põe diante aquele objecto raro.

Já se sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

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No canto IX, a deusa faz uma entrada moralista, bastante inesperada. E é com essa finalidade moralizadora que prepara a alegoria da Ilha dos Amores, onde há momentos de passageiro erotismo.


E vê do mundo todo os principais

Que nenhum no bem púbrico imagina;

Vê neles que não têm amor a mais

Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;

Vê que esses que frequentam os reais

Paços, por verdadeira e sã doutrina

Vendem adulação, que mal consente

Mondar-se o novo trigo florescente.

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Vê que aqueles que devem à pobreza

Amor divino, e ao povo caridade,

Amam somente mandos e riqueza,

Simulando justiça e integridade;

Da feia tirania e de aspereza

Fazem direito e vã severidade;

Leis em favor do Rei se estabelecem,

As em favor do povo só perecem.

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(…)

Oh, que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves! Que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;

Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

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2. Tétis

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No canto X, a apresentar a Máquina do Mundo (miniatura do Universo ao modo aristotélico-ptolomaico), a Tétis da Ilha dos Amores fala como um sábio teólogo:

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Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assim foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfície tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

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3. Outras figuras femininas

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A “linda Inês”: Camões transforma este conhecido exemplo histórico de malvadez numa nobre vítima da paixão, para cantar um tema muito seu, o dum grande amor com final infeliz. Veja-se no canto III o episódio respectivo.

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Tétis, uma semideusa cruel (o fracasso amoroso do Adamastor)

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Já néscio, já da guerra desistindo,

Ua noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri de longe, abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.

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Oh que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Qu'eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo!

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