quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Verdes são os campos


Verdes são os campos,
Da cor do limão:

Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas que nela
Vosso pasto tendes:
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis,
C'o contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendeis:
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

Ouça aqui uma versão cantada do poema (com modificações).

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A figura feminina em Camões (1)


Reflexão sobre a sexualidade humana



1. Introdução

A sexualidade pode ser entendida como um conceito muito amplo; nesse caso, ela refere tudo o que é específico do homem e específico da mulher e o relacionamento que entre eles se estabelece.
Alguns exemplos: ele é normalmente mais alto e dotado de mais força física; a voz dele é mais grave, a dela é mais aguda; ele tem barba, ela não; os órgãos reprodutivos dos dois são naturalmente distintos e complementares; a ela espera-a a maternidade, a ele a paternidade; normalmente ele é mais dado a jogos de força; etc.
Ao lado dos aspectos diferenciadores, há as semelhanças: ambos são seres inteligentes dotados de vontade e memória, possuem uma estrutura corporal globalmente idêntica, há imensas tarefas que ambos são capazes de executar…
Na família verifica-se uma produtiva complementaridade entre os dois (na vida íntima, na criação e educação dos filhos, no convívio e nas tarefas do dia-a-dia, etc.)
Se a sexualidade pode oferecer ao casal momentos variados prazer, a sua fruição desregrada dá azo aos maiores aviltamentos da pessoa humana, como tantas vezes a imprensa noticia; é no seu âmbito que se ganha ou se perde a importante batalha da demografia dum país; etc., etc.

É claro que ao professor de Português só cabe falar do tema como ele ocorre nas obras literárias. Por isso, o que aqui se faz por isso é identificar alguns dos aspectos da sexualidade tais como se manifestam na obra de Camões.

Sabemos que há fases nessa produção poética, o que possibilita algum ordenamento dos poemas. Por exemplo, um soneto seu fala do tempo “em que de amor viver soía”, por oposição ao presente. Num outro, as redondilhas de Sôbolos rios, ele parece iniciar um caminho de poeta místico:

Ouça-me o pastor e o rei, / Retumbe este acento santo, / Mova-se no mundo espanto; / Que do que já mal cantei / A palinódia já canto”. (1)

Isto é, devemos distinguir ao menos, ainda que de modo vago, dois ou três momentos nessa produção. Infelizmente, não é possível apoiar isto com uma cronologia segura. Aliás, datas é coisa que na sua biografia é difícil estabelecer.

O ano de 1572 (publicação d’Os Lusíadas) é muito importante, pois é a data da vinda a público do seu poema maior e nele podemos encontrar muitas referências ao modo como concebe o relacionamento do homem com a mulher.

Vamos pois considerar a figura feminina conforme a encontramos nalguns dos seus poemas (fica de fora, por exemplo, o importante Auto do Filodemo).

O amoroso impenitente, vário e sofrido; as suas fúrias


No tempo que de Amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria
O Céu, porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co peso descansou,
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!


Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh, quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro génio de vinganças!

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(1) Antóno José Saraiva acentuou o contraste que representa a "Sôbolos rios..." na obra de Camões e chega a dizer-nos (Colóquio, 1961, p. 53) que há nela uma "elección" inaciana, "golpe macedónico", "salto que faz pensar na conversão de alguns dos primeiros jesuítas". João Mendes, Literatura Portuguesa I, Editorial Verbo, págs. 234-5.

A figura feminina em Camões (2)

2. Desenvolvimento

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A. Na Lírica - redondilhas

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A mulher mitificada das Redondilhas

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Se Helena apartar

Do campo seus olhos,

Nascerão abrolhos.

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A verdura amena,

Gados que paceis,

Sabei que a deveis

Aos olhos de Helena.

Os ventos serena,

Faz flores de abrolhos

O ar de seus olhos.

Faz serras floridas,

Faz claras as fontes...

Se isto faz nos montes,

Que fará nas vidas?

.

Trá-las suspendidas

Como ervas em molhos,

Na luz de seus olhos.

Os corações prende

Com graça inumana.

De cada pestana

Ua alma lhe pende.

Amor se lhe rende

E, posto em giolhos,

Pasma nos seus olhos.

.

Verdes são os campo,

Da cor do limão.

Assim são os olhos

Do meu coração.

.

Campo que te estendes

Com verdura bela...

Ovelhas, que nela

Vosso pasto tendes....

De ervas vos mantendes,

Que traz o Verão,

E eu das lembranças

Do meu coração.

.

Gados que paceis,

Co contentamento,

Vosso mantimento,

Não no entendeis.

Isso que comeis

Não são ervas, não:

São graças dos olhos

Do meu coração.

.

Um retrato mais realista

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Endechas à Bárbara Escrava

.

Aquela cativa

Que me tem cativo,

Porque nela vivo

Já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

Em suaves molhos,

Que para meus olhos

Fosse mais formosa.

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Nem no campo flores,

Nem no céu estrelas

Me parecem belas

Como os meus amores.

Rosto singular,

Olhos sossegados,

Pretos e cansados,

Mas não de matar.

.

Uma graça viva,

Que neles lhe mora,

Para ser senhora

De quem é cativa.

Pretos os cabelos,

Onde o povo vão

Perde opinião

Que os louros são belos.

.

Pretidão de Amor,

Tão doce a figura,

Que a neve lhe jura

Que trocara a cor.

Leda mansidão,

que o siso acompanha;

Bem parece estranha,

Mas bárbara não.

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Presença serena

Que a tormenta amansa;

Nela, enfim, descansa

Toda minha pena.

Esta é a cativa

Que me tem cativo,

E, pois nela vivo,

É força que viva.

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B. Na Lírica – sonetos

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Um soneto com um retrato em tom platónico, desmaterializado

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Um mover de olhos, brando e piedoso

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

Quase forçado; um doce e humilde gesto,

De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;

Um repouso gravíssimo e modesto;

Uma pura bondade, manifesto

Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;

Um medo sem ter culpa; um ar sereno;

Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste fermosura

Da minha Circe, e o mágico veneno

Que pôde transformar meu pensamento.

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Duas histórias de amor com final infeliz

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Aquela triste e leda madrugada,

Cheia toda de mágoa e de piedade,

Enquanto houver no mundo saudade

Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada

Saía, dando ao mundo claridade,

Viu apartar-se d'uma outra vontade,

Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio

Que d'uns e d'outros olhos derivadas

S'acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas

Que puderam tornar o fogo frio,

E dar descanso às almas condenadas.

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Quando de minhas mágoas a comprida

Maginação os olhos me adormece,

Em sonhos aquela alma me aparece

Que para mim foi sonho nesta vida.

Lá nüa soïdade, onde estendida

A vista pelo campo desfalece,

Corro par'ela; e ela então parece

Que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: não me fujais, sombra benina!

Ela (os olhos em mim cum brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser),

Torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina...

Antes que diga mene, acordo e vejo

Que nem um breve engano posso ter.

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As éclogas 2 e 3: procurar.

A figura feminina em Camões (3)

C. N’Os Lusíadas

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N’Os Lusíadas ocorre uma pequena galeria de mulheres: Vénus, a “linda Inês” (Inês de Castro), a “branca Tétis” do Adamastor, as Ninfas dos cantos IX e X com a sua chefe, Tétis (que não é a do Adamastor…). Os traços que as caracterizam são muito distintos.

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1. Vénus

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Vénus surge no Consílio dos Deuses olímpicos, no canto I, a bater-se pelos seus rasteiros interesses. Reaparece depois no Olimpo, no canto II, num papel também de pouca dignidade e num retrato de um realismo erótico que vem pouco a propósito (nua a bem dizer, apenas lhe pende da cintura um pano quase transparente):

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Os crespos fios d'ouro se esparziam

Pelo colo que a neve escurecia;

Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,

Com quem Amor brincava e não se via;

Da alva petrina flamas lhe saíam,

Onde o Menino as almas acendia.

Polas lisas colunas lhe trepavam

Desejos, que como hera se enrolavam.

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Cum delgado cendal as partes cobre

De quem vergonha é natural reparo;

Porém nem tudo esconde nem descobre

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, pera que o desejo acenda e dobre,

Lhe põe diante aquele objecto raro.

Já se sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

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No canto IX, a deusa faz uma entrada moralista, bastante inesperada. E é com essa finalidade moralizadora que prepara a alegoria da Ilha dos Amores, onde há momentos de passageiro erotismo.


E vê do mundo todo os principais

Que nenhum no bem púbrico imagina;

Vê neles que não têm amor a mais

Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;

Vê que esses que frequentam os reais

Paços, por verdadeira e sã doutrina

Vendem adulação, que mal consente

Mondar-se o novo trigo florescente.

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Vê que aqueles que devem à pobreza

Amor divino, e ao povo caridade,

Amam somente mandos e riqueza,

Simulando justiça e integridade;

Da feia tirania e de aspereza

Fazem direito e vã severidade;

Leis em favor do Rei se estabelecem,

As em favor do povo só perecem.

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(…)

Oh, que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves! Que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;

Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

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2. Tétis

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No canto X, a apresentar a Máquina do Mundo (miniatura do Universo ao modo aristotélico-ptolomaico), a Tétis da Ilha dos Amores fala como um sábio teólogo:

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Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assim foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfície tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

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3. Outras figuras femininas

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A “linda Inês”: Camões transforma este conhecido exemplo histórico de malvadez numa nobre vítima da paixão, para cantar um tema muito seu, o dum grande amor com final infeliz. Veja-se no canto III o episódio respectivo.

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Tétis, uma semideusa cruel (o fracasso amoroso do Adamastor)

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Já néscio, já da guerra desistindo,

Ua noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri de longe, abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.

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Oh que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Qu'eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo!

A figura feminina em Camões (4)

D. Na obra mística

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O canto amoroso de Camões não se fica pelo que já foi documentado. Ele é talvez o melhor poeta místico português de todos os tempos. As estrofes que se seguem são uma amostra da sua poesia nessa área e pertencem ao poema Santa Úrsula. Enquadram-se no momento em que a jovem suplica o martírio: ela sabe que a sua sede de amor será depois plena e definitivamente satisfeita.

Com excepção de alguns passos d’Os Lusíadas (já mencionados), em Camões ouve-se sobretudo a sua voz, raramente a feminina. Aqui é diferente.

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Amor, divino Amor, Amor suave,

Amor, que amando vou toda rendida:

Com quem não há na vida pena grave,

Sem quem glória real não há na vida;

Amor, que do meu peito tens a chave,

Amor, de cujo amor ando ferida,

Quando verei, Amor, o que desejo,

Pera que veja, Amor, o que não vejo?

.

(…)

Amor, que por amor Te dispuseste

A restaurar o mundo errado e triste;

Amor, que por amor do Céu desceste;

Amor, que por amor à Cruz subiste;

Amor, que por amor a vida deste;

Amor, que por amor a glória abriste,

Quando verei, Amor, o que desejo,

Pera que veja, Amor, o que não vejo?

.

Amor, que mais e mais sempre Te aumentas

No coração que lá contigo trazes;

Amor, que de amor puro Te sustentas

No fogo em que Tu mesmo arder me fazes;

Amor, que sem amor não Te contentas,

De tudo com amor Te satisfazes,

Quando verei, Amor, o que desejo,

Pera que veja, Amor, o que não vejo?

.

(…)

Quando verei um dia em que ofereça

Por Ti ao cruel ferro o peito forte,

E cercada de virgens apareça

Na tua soberana e eterna corte;

Onde lá cada ua Te mereça,

Cá passando comigo a própria morte;

E todas dando o sangue juntas, todas

Celebremos contigo eternas bodas?

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4. Conclusão

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Ficou atrás uma amostra de como o nosso maior poeta viu a mulher e com ela lidou; como lidou com o amor, com a sexualidade. Ele cantou simultaneamente uma mulher irreal, mitificada ou desmaterializada, cantou deusas e semideusas em situações diversas, foi às vezes mais realista, sofreu amargamente com amores impossíveis ou não concretizados – morreu solteiro, relembre-se – e, depois, fez a sua palinódia, a transmutação do seu canto em poesia “a lo divino”.

Camões é contemporâneo dos dois grandes escritores místicos espanhóis Santa Teresa de Ávila e de S. João da Cruz.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Descalça vai para a fonte

Descalça vai para a fonte é o retrato de uma jovem popular, que se move num espaço campestre, a caminho da fonte. Este motivo poético é muito antigo.

Leanor vai descalça, leva o pote da água à cabeça, tem cabelo loiro que prende com uma fita vermelha, “cinta de fina escarlata / sainho de chamalote», «traz a vasquinha de cote / mais branca que a neve pura”. Excelente colorido.

A primeira volta é quase só uma enumeração, com que se pretende ir traçando o retrato da rapariga. Reparar nos verbos de movimento: leva, vai...

Nas «mãos de prata» está uma metáfora de sentido hiperbólico; no final há a hipérbole e a comparação. Atenção também à anástrofe.

Na segunda volta, continua a enumeração. O poeta fixa-se agora na cabeça da jovem. Remata também em hipérbole, com uma curta alegoria e comparação. Continuam os verbos de movimentos e a anástrofe.

Poema de tipo palaciano, é construído de delicados e hiperbólicos achados, mas de bom gosto.

Ver a modernista paráfrase de A. Gedeão.