quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A figura feminina em Camões (1)


Reflexão sobre a sexualidade humana



1. Introdução

A sexualidade pode ser entendida como um conceito muito amplo; nesse caso, ela refere tudo o que é específico do homem e específico da mulher e o relacionamento que entre eles se estabelece.
Alguns exemplos: ele é normalmente mais alto e dotado de mais força física; a voz dele é mais grave, a dela é mais aguda; ele tem barba, ela não; os órgãos reprodutivos dos dois são naturalmente distintos e complementares; a ela espera-a a maternidade, a ele a paternidade; normalmente ele é mais dado a jogos de força; etc.
Ao lado dos aspectos diferenciadores, há as semelhanças: ambos são seres inteligentes dotados de vontade e memória, possuem uma estrutura corporal globalmente idêntica, há imensas tarefas que ambos são capazes de executar…
Na família verifica-se uma produtiva complementaridade entre os dois (na vida íntima, na criação e educação dos filhos, no convívio e nas tarefas do dia-a-dia, etc.)
Se a sexualidade pode oferecer ao casal momentos variados prazer, a sua fruição desregrada dá azo aos maiores aviltamentos da pessoa humana, como tantas vezes a imprensa noticia; é no seu âmbito que se ganha ou se perde a importante batalha da demografia dum país; etc., etc.

É claro que ao professor de Português só cabe falar do tema como ele ocorre nas obras literárias. Por isso, o que aqui se faz por isso é identificar alguns dos aspectos da sexualidade tais como se manifestam na obra de Camões.

Sabemos que há fases nessa produção poética, o que possibilita algum ordenamento dos poemas. Por exemplo, um soneto seu fala do tempo “em que de amor viver soía”, por oposição ao presente. Num outro, as redondilhas de Sôbolos rios, ele parece iniciar um caminho de poeta místico:

Ouça-me o pastor e o rei, / Retumbe este acento santo, / Mova-se no mundo espanto; / Que do que já mal cantei / A palinódia já canto”. (1)

Isto é, devemos distinguir ao menos, ainda que de modo vago, dois ou três momentos nessa produção. Infelizmente, não é possível apoiar isto com uma cronologia segura. Aliás, datas é coisa que na sua biografia é difícil estabelecer.

O ano de 1572 (publicação d’Os Lusíadas) é muito importante, pois é a data da vinda a público do seu poema maior e nele podemos encontrar muitas referências ao modo como concebe o relacionamento do homem com a mulher.

Vamos pois considerar a figura feminina conforme a encontramos nalguns dos seus poemas (fica de fora, por exemplo, o importante Auto do Filodemo).

O amoroso impenitente, vário e sofrido; as suas fúrias


No tempo que de Amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria
O Céu, porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co peso descansou,
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!


Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh, quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro génio de vinganças!

----

(1) Antóno José Saraiva acentuou o contraste que representa a "Sôbolos rios..." na obra de Camões e chega a dizer-nos (Colóquio, 1961, p. 53) que há nela uma "elección" inaciana, "golpe macedónico", "salto que faz pensar na conversão de alguns dos primeiros jesuítas". João Mendes, Literatura Portuguesa I, Editorial Verbo, págs. 234-5.

Sem comentários:

Enviar um comentário