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Um mover de olhos, brando e piedoso
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
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Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
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Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:
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Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.
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Dos textos de Camões até agora estudados, este é o segundo em que ele usa a primeira pessoa, em que põe em evidência a sua relação pessoal com a mulher a que alude. Neste sentido, há alguma aproximação ao que se passa com as Endechas a Bárbara. Mas mesmo em relação a esse poema, nota-se uma diferença: lá ele usa o presente, aqui pretérito. Lá ele fala duma experiência actual, em curso; aqui parece que tudo é passado.
Este poema compõe-se claramente de dois momentos, um constituído pelas três primeiras estrofes e outro pelo terceto final.
Nas três estrofes, é curiosa a presença constante do artigo indefinido catafórico. Ele antecipa, mas não dispensa aquele pronome esta, esse sim anafórico. Nessas estrofes, o sujeito poético reflecte, rememora os traços marcantes da sua antiga Circe, daquela que o enfeitiçou. Não faz propriamente o seu retrato, mas delineia-o. Ao longo delas, à parte a enumeração, um ou outro encavalgamento, os processos estilísticos estão quase ausentes: é como que uma análise em contemplação.
No terceto final, a chave de ouro, essa abunda em processos poéticos: as hipérboles, a antonomásia e a metáfora.
Repare-se na seriedade com que o poeta trata o tema amoroso… mesmo se ele já não faz a sua felicidade.
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